Jussara Lucena, escritora

Textos

Entre sonhos, trilhos e araucárias

Sentado em um banco da rodoviária de São Paulo eu aguardava o ônibus que me levaria até Pindamonhangaba, depois eu seguiria até Campos do Jordão a bordo de um trem da Estrada de Ferro. O frio era intenso naquela madrugada, quase manhã de 09 de maio de 1958. Assim, meu peito doía ainda mais e a tosse insistia em me incomodar. Os tratamentos com antibióticos pareciam não fazer efeito. Eu consultara muitos especialistas, tentei muitos tratamentos. Evitei ao máximo deixar a minha cidade, os meus negócios. O trabalho foi o que me restou depois que a minha Marta partiu. Se ao menos tivéssemos tido filhos...

Alguns médicos sanitaristas faziam tratamentos com bons resultados em Campos do Jordão. O clima de lá diziam fazer milagres. Eu precisava de um pouco de alívio. Meu rosto estava irreconhecível, marcado pela palidez e profundas olheiras. As noites mal dormidas também me trouxeram a fraqueza. Hesitei em me mudar para lá, pois, viver não estava valendo a pena. Talvez eu só adiasse um pouco o fim, sofresse ainda mais. Tia Madalena me convenceu do contrário:

- Tomaz, seu pai não desistiria, ele foi um lutador! – insistiu ela.

Fui até a banca de jornal, comprei uma Folha da Manhã, recém-entregue pelo jornaleiro, coloquei-a debaixo do braço e no bar pedi um cafezinho. Precisava esquentar um pouco os pulmões e um café ajudaria. Abri o jornal. Na primeira página em letras garrafais estava estampada a manchete: “Ascenderia a 300 o número de mortos no desastre de ontem na Central. No Rio”. A nota descrevia o choque de dois trens, um deles lotado, no horário de maior movimento, quando os trabalhadores voltavam para suas casas. Eu não havia parado para pensar que andar de trem fosse tão perigoso. Confiei que a viagem até Campos do Jordão seria segura e agradável.

Continuei lendo a Folha. Eu me surpreendia todos os dias com a quantidade de acontecimentos em nível mundial que se registravam. Com a Guerra Fria e a Corrida Espacial os Estados Unidos e a União Soviética disputavam a hegemonia internacional. Na mesma página se relatava a hostilidade dos peruanos em Lima com a presença do então vice-presidente americano Richard Nixon, a explosão de um foguete soviético que tinha como destino a Lua e o novo recorde mundial de altitude alcançado pelo caça americano Starfighter. Havia também uma súplica pela abolição das experiências atômicas.

Logo que chegasse lá providenciarei o transporte do meu DKW - pensei. Mal pude usa-lo. O trem transporta veículos e cargas também, já que as estradas entre Pindamonhangaba e Campos do Jordão estão um pouco precárias. Pensava em
Campos e lembrava o belo rosto de Cassilda Becker no filme da Vera Cruz “Floradas na Serra”. Uma história de sucesso e de fracasso frente à doença. Também de amor e de ressentimentos. Como me fazia falta o sentimento de carinho, de afeição. Perguntava-me: o que encontrarei por lá? Sobravam-me o dinheiro e a solidão.

O ônibuschegou, era só pegar a Via Dutra e logo estaríamos em Pinda. Lembrei-me de quanto pó nós comíamos na antiga estrada que cortava o Vale do Paraíba. Cada viagem era uma aventura diferente.Com o asfalto, seria mais fácil.

Preocupado em não prejudicar a saúde de outras pessoas comprei duas poltronas e sentei-me próximo da janela. Um senhor que ia até Taubaté tentou sentar-se ao meu lado e eu, meio sem jeito, pedi para deixar-me viajar só. Mesmo do outro lado do corredor ele me perguntava o que eu achava do Juscelino. Não tive tempo para responder e ele emendou seus comentários sobre o presidente e não parou até a nossa chegada em Pinda.

Mal começara a viagem e meu corpo doía. Aproveitei a parada para tomar os remédios. Comprei alguns amendoins vendidos por um ambulante e tomei um refrigerante no bar em frente à rodoviária. Caminhei até a estação ferroviária, estava quase na hora da partida do trem.

Como o espaço no trem era limitado, não tive a opção de exclusividade nos bancos. Naquela linha todos estavam acostumados ao transporte de doentes e já sabiam como se prevenir quanto a contaminações. As pessoas acabavam por não olhar muito umas para as outras. Pelas conversas e sotaques percebia-se que no trem havia pessoas de diversas partes do país. Alguns, como eu, viajavam sós.

Levei algum tempo para me ambientar aos sacolejos da máquina elétrica. A janela permitia uma boa visão da paisagem por onde o trem passava. No trecho inicial um terreno bastante plano e com algumas áreas de agricultura. Criei coragem e olhei para o lado onde um senhor de bigodes conservou-se concentrado em seu livro e fez de conta que não percebia a minha presença. Para puxar conversa disse-lhe: “está quente aqui não?”. Ele não só deixou de responder como também abotoou o paletó.

Minha viagem começou a ficar mais interessante quando olhei para frente, mais precisamente dois bancos adiante, no outro lado do corredor.Lá, sentada de forma elegante, uma senhora conversava com outra mais velha. Usava as mãos para complementar a sua fala. Seus gestos suaves me hipnotizaram por alguns instantes. Fixei-me nela. O chapéu não permitia que eu visse um pouco do seu rosto ou do seu cabelo que parecia ser de um castanho avermelhado. A pele era muito branca, as orelhas delicadas. Olhei para a janela ao seu lado e, numa combinação de contrastes ente o vidro e o ambiente, pude perceber os seus olhos espelhados no cristal.

Fiquei fitando-os e desejei que olhos como aqueles olhassem para mim. Só depois de algum tempo percebi a beleza que havia além deles. Passei a acompanhar o movimento dos lábios que de tempos em tempos sorriam docemente. Voltei para os olhos no mesmo instante em que ela, erguendo ligeiramente a cabeça e olhando para a mesma janela pareceu perceber que era observada. Sem jeito, desviei meu olhar por alguns instantes. Voltei-me novamente para o vidro e percebi um sorriso envergonhado, porém receptivo. Lembrei-me de Marta, senti-me traindo a sua confiança.

A pequena locomotiva iniciou a subida da Serra da Mantiqueira, mantendo o ritmo e cortando as montanhas.
Naquele mês de outono o verde perdia um pouco de sua força, porém, eu ficava imaginando como seria a primavera com suas flores, seus pássaros, enfim, o despertar de novas vidas. Porém, antes disso haveria um inverno, mais rigoroso que o da minha Terra da Garoa. Precisaria suportá-lo.

Percebi a queda significativa da temperatura à medida que subíamos. A paisagem também se transformava e a vista perdia-se ao longe em meio a tanta vegetação. Já sentia a diferença na pureza do ar, no perfume da brisa que adentrava o vagão.Ela também apontava para a paisagem, a senhora ao lado parecia conhecer melhor o trajeto e lhe mostrava florestas, o relevo, as rochas esculpidas pelo tempo.

O trem fez mais uma parada, agora em Santo Antônio do Pinhal. A cidade fazia jus ao nome, foi abençoada com um imenso mar de Araucárias. Via-se ao longe todo o Vale do Paraíba. Quem sabe se quando a minha saúde melhorasse eu não voltasse para tomar uma boa garrafa de vinho apreciando aquela vista? A fome estava chegando, lembrei-me de ter lido que em Campos do Jordão fora introduzida a produção de trutas. Não poderia deixar de prova-las.

Fazendo o trajeto, observando as curvas da estrada de ferro vencendo a altitude apenas com o contato nos trilhos, sem cremalheiras, reconheci o belo trabalho de engenharia e o empreendedorismo daqueles que no início do século enfrentaram o desafio de não só facilitar o acesso de pessoas enfermas, mas, também deram oportunidade de que a as cidades crescessem, ligando-se mais facilmente aos grandes centros. Também compreendi, observando os granitos, as aventuras daqueles que ali se instalaram na busca de minerais. Já estávamos perto de Campos do Jordão. Não sabia se estava mais ansioso pela chegada ou se preocupado com o que estava por vir.

Aproveitei para esticar minhas pernas e entrar pelo outro lado do vagão. Seria a oportunidade de cruzar com a bela dama dos belos olhos. Precisava ser discreto. Tocando a aba do chapéu cumprimentei-as com serenidade. Ela esboçou um sorriso, sem movimentar os lábios, que permaneciam colados. Percebi que a senhora ao lado lhe cutucou levemente com o cotovelo e ela disfarçou, reprimindo o gesto da amiga com o olhar.

Na chegada à cidade, percebi o contraste entre a riqueza de algumas casas construídas em estilo europeu e dos casebres pendurados nos morros. A diferença social entre aqueles que procuram a cidade para lazer, ou para tratamento e dos moradores locaisjá ficava evidente.

Algumas placas sinalizavam a direção dos sanatórios e pessoas vestidas de branco circulavam pelas ruas. Nunca imaginei contrastes maiores. Não consegui identificar a minha casa durante o percurso.

Estávamos chegando à Estação de Vila Abernésia. A cena da personagem de Cassilda Becker em Floradas da Serra perdendo o trem por conta do encontro com a personagem do
Jardel Filho me veio à mente. Estes encontros dificilmente acontecem na vida real! – Pensei. Várias pessoas aguardavam o trem na estação. Genésio, o caseiro, deveria estar entre elas. Não o conhecia, mas, acreditei que daríamos um jeito de nos encontrar. A curiosidade aumentou. Será que a vista da casa seria tão boa quanto
às imagens do caminho?

Lá estava ele, carregando consigo um pequeno cartaz com o meu nome. Ele era bem mais jovem do que eu imaginara.

- Boa noite! O senhor é o Seu Tomaz?

- Sim, você deve ser o Genésio. Muito prazer!

- Fez boa viagem? Segure um pouco mais a fome, a Maria Aparecida preparou uma boa comida.

- Um pouco cansativa, mas o visual e a tranquilidade da jornada me fizeram bem. Realmente estou com um pouco de fome.

- A patroa também preparou uma canja deliciosa. Não há nada melhor pra espantar este friozinho!

Pareceu-me boa gente o Genésio. Enfim eu conheceria a casa. Comprei-a em construção. Vi apenas alguns desenhos e fotografias do terreno. Acreditava que tinha exagerado um pouco: haveria muito espaço para uma pessoa solitária.

A estação começou a ficar vazia. Desci alguns degraus até o acesso da rua, parei por alguns instantes ao lado da escada. Genésio foi buscar o carro. Ouvi uma doce voz e me virei para ver de onde vinha. Naquele exato momento uma jovem tropeçou no degrau da escada e foi ao chão. Encontrei reflexo e força para evitar sua queda.

- Perdoe-me meu senhor. Continuo a mesma desastrada de sempre! – em meus braços disse-me a jovem, corada pela situação.

- A senhora está bem? – perguntei olhando nos olhos azuis da bela jovem que observei durante a viagem.

- Sim. Obrigado!

Um senhor que as aguardava correu em apoio, pegaram suas bagagens e se foram. Ela era realmente bonita!

Olhei para o céu, talvez chovesse. Genésio fazia sinal, bloquearam a entrada. Caminhei até lá. Respirei fundo, o ar era mais puro mesmo.

A casa pareceu-me muito bonita. Não havia iluminação na rua. Tive que esperar por um novo dia para vê-la melhor.Era muito espaçosa. O Cláudio, meu arquiteto, teve muito bom gosto na construção e na escolha dos móveis. O cheiro da comida estava muito bom! Preferi tomar um banho primeiro. O quarto era confortável. Coloquei a fotografia de Marta na cabeceira da cama.

No chuveiro percebi que a água dali também parecia diferente, energizava mais e, junto com a poeira da cidade grande e da estrada, um pouco do peso sobre os meus ombros desapareceu. Enquanto a gotas de água caiam sobre a minha cabeça me voltou à lembrança o rosto da mulher no trem. Percebi que a visão dela me perturbava.

Quem seria ela? Qual o seu nome? O que a levou até Campos? Ela não possuía aliança em seu dedo, acabei por reparar.

Um pouco mais agasalhado desci para o jantar. Maria Aparecida me aguardava com um sorriso no rosto e a mesa pronta e farta. Pude reparar no canto da sala de estar, que compunha o ambiente da sala de jantar um garotinho de uns seis anos escondido atrás de uma poltrona. Fingi não tê-lo visto.

- Boa noite seu Tomaz!

- Boa noite Maria! Muito prazer em conhecê-la.

- Espero que o senhor goste. É comida feita por gente simples. – disse Maria Aparecida com um olhar tímido.

- Depois o senhor pode contratar uma cozinheira. – emendou Genésio.

- O cheiro está ótimo! – respondi.

- Mas porque só há um prato nesta mesa? – questionei.

- Depois nós comemos lá na cozinha. – respondeu Maria Aparecida.

- Por favor, coloquem mais três pratos, comam comigo. Vejam só o tamanho desta mesa e a quantidade de comida nessas travessas!

- Mais três pratos?

- Sim, um para aquele garotinho ali. – apontei para o menino.

- Chiquinho seu curioso. Não disse para você ficar em casa! – repreendeu o pai.

- Venha cá Francisco! – chamei o moleque.

- O nome dele é Mário. O avô queria que fosse Francisco e aí ele virou Chiquinho. – explicou-me a mãe.

- Como você prefere ser chamado garoto? – perguntei.

- Como todo mundo me chama de Chiquinho, o senhor pode me chamar de Mário.

Foi uma gargalhada só. Todos sentaram à mesa, no princípio um pouco tímidos, mas depois se soltaram e começaram a me descrever as coisas boas de Campos do Jordão. Mário me pediu que falasse sobre a cidade grande e contei um pouco das minhas experiências. O tempo passou rápido. Todos precisavam descansar. Mesmo cansado demorei a pegar no sono. Foram muitas as novidades.

No dia seguinte acordei não muito cedo. Afastei as cortinas e abri a janela do quarto. Fazia um belo dia de sol. A vista dali era incrível. Muitas e muitas araucárias e ao fundo montanhas e um vale. Como é bom contemplar o verde, a paz, o silêncio. Nada de buzinas num trânsito apressado, nem o céu cinzento coberto pela fumaça das fábricas.

Ouvi, no andar de baixo, uma moda de viola tocando no rádio e senti o cheiro estonteante do café e o aroma de bolo de milho, como os feitos pela minha mãe. Na rua ouvi o som de uma charrete e o trotar de cavalos. Um galo cantou ao longe. Mais próximo, pássaros passavam numa revoada. Olhei para o jardim em frente e vi um esquilo, lépido, correndo atrás de comida.

Café da manhã tomado, Genésio me levou para conhecer um pouco do lugar. A cidade foi instalada num vale. Minha casa ficava perto de Vila Abernésia, próximo do sanatório onde realizaria meu tratamento. Seguimos na estrada que margeava a ferrovia e passamos pela Vila Jaguaribe e depois chegamos até a Vila Capivari. Realmente as construções eram fantásticas. Havia vários hotéis instalados e a mistura entre turistas e pessoas em busca de cura se confirmou.

Na volta, paramos em frente ao sanatório onde faria meu tratamento. Achei melhor não entrar, deixaria para a segunda-feira. Nem todos tinham a mesma sorte que a minha e ficavam internados em unidades de tratamento repletas de doentes em camas de enfermaria. Ao sairmos percebi outro automóvel chegando. Pedi a Genésio que esperasse. Era ela, a moça do trem. Fiquei intrigado, ela tinha uma aparência saudável, o que faria em um sanatório?

No domingo acordei disposto. Convidei Mário para caminhar comigo, depois de pedir autorização para Genésio. Ele me propôs subir até o Morro da Boa Vista para ver a cidade e o lugar onde o Governador Adhemar de Barros havia idealizado o Palácio do Governo, construiria um castelo de estilo europeu. Foi um belo exercício para um pulmão desgastado como o meu, mas, valeu a pena. O visual era fantástico. A companhia do garoto me fez muito bem. Ele era esperto, falante. Falei de minhas experiências e ele se mostrava muito curioso. Sempre sonhei em ter filhos e passar bons momentos com eles. Mário me permitiu experimentar um pouco disto nos dias de convívio. No alto do Morro da Boa Vista o tempo mudou repentinamente. Uma densa neblina se formou e encobriu toda a cidade. Conheci mais uma das marcas registradas de Campos.

Comecei meu tratamento, conheci muitas histórias com final feliz e também outras tragédias causadas pelas doenças respiratórias. Na convivência com a família de Genésio percebi que há outras coisas na vida além do trabalho e as lembranças da bela jovem no trem me faziam sentir um pouco mais vivo. Eu estava decidido a reencontrá-la. Não sabia como. Diversas vezes fui até a estação nos horários de partida e de chegada do trem, sempre sem sucesso.

O tempo foi passando e eu não melhorava muito. Até que um dia saí para almoçar num hotel da cidade. O local estava totalmente ocupado e fiquei aguardando a minha vez numa das salas preparadas para a espera. Enquanto isso, circulei pelas dependências e me deparei com um mural que contava a história do estabelecimento. Entre as imagens mais recentes havia uma fotografia de família e entre as pessoas no retrato estava a jovem do trem.

Procurei o recepcionista e perguntei, discretamente, quem era a família no retrato. Ele me disse que era a família do proprietário do hotel, que por sinal não estava nada bem. Estava internado num dos hospitais da cidade, provavelmente nos últimos dias de vida. Trocamos mais algumas palavras sobre o hotel e tomei coragem para perguntar sobre a jovem. Tratava-se da neta do proprietário. Ela morava no interior de São Paulo. Naquele momento triste vivenciado por eles, tentei disfarçar a minha alegriaquando o jovem me informou que ela chegaria no trem do dia seguinte. Ele mesmo enviara um telegrama para as pessoas mais próximas informando do agravamento da doença. Ela e a tia já haviam estado ali há menos de um mês. Tive a confirmação de que era ela a moça no vagão.

No dia seguinte aguardei a chegado do trem, porém, fiquei observando-a ao longe. Ela vestia roupas mais sóbrias, compatíveis com o momento que vivia. Respeitando o momento me mantive afastado, dirigi o carro até um armazém e comprei algumas guloseimas que levaria para Mário. No caminho de volta, o mesmo que conduzia de volta a estação, percebi um carro com o pneu furado. Parei para ajudar. Para minha surpresa era o automóvel da família da moça do trem, a neta do proprietário do hotel.
Ela e a tia me reconheceram. A tia disse:

- Vejam se não é o seu salvador novamente!

- É muita coincidência. – respondi timidamente, percebendo uma inquietação na voz da tia.

- Será? – questionou a senhora.

- Desculpem, vi o carro parado e acreditei que precisassem de ajuda.

- Precisamos de um macaco. – respondeu o motorista.

- Eu preciso de paciência. – emendou a tia.

- Lhe empresto o meu. – respondi ao motorista.

A moça, até então calada, falou:

- Obrigado. Eu e minha tia estamos um pouco cansadas pela viagem. Saímos às pressas de casa. Meu avô não passa bem.

- Façamos o seguinte: enquanto seu motorista troca o pneu, posso leva-las até seu destino. – propus.

- Não, obrigada! – respondeu a tia.

- Ora, titia! Seja razoável. Este senhor só quer nos ajudar.

- Está bem. Entretanto não acho que seja só coincidência este homem estar aqui. Vi como ele olhou para você na viagem anterior a bordo daquele trem.

- Perdoe a minha tia, ela está muito triste pela doença de seu pai, o meu avô. Eu sou Lídia, esta e minha tia Maria. Prazer em conhecê-lo!

- Lídia, dona Maria, prazer em conhecê-las! Meu nome é Tomaz.

Coloquei as malas no carro e elas entraram. Permaneceram caladas, a tia resmungava algo e mantinha o semblante fechado, observei pelo espelho retrovisor.

- Pelo seu sotaque o senhor é da capital, não é senhor Tomaz? – perguntou-me Lídia, quebrando o silêncio.

- Isto mesmo. E as senhoras, são de onde?

- Moramos em Itararé, minha família é de Sorocaba. Meu avô sempre teve espirito de aventura e foi um dos pioneiros a mudar para a Estância de Campos.

- Eu soube, vi as imagens que contam a história da vida de seu avô aqui nesta cidade.

- Está vendo minha sobrinha! Este homem está seguindo os seus passos.

- Não quero assusta-las, senhoras. Foi tudo coincidência. Estive no hotel de seu pai, dona Maria. O recepcionista me falou da doença dele. Imagino pelo que ele está passando. Eu também estou aqui para tratamento de problemas respiratórios.

- Só faltava essa, agora estamos dentro do carro de um tuberculoso! – disse a tia.

- Titia, a senhora está sendo inconveniente e mal educada.

- Olhe aqui meu senhor, depois que minha irmã e meu cunhado morreram sou eu quem toma conta desta jovem e não vou permitir que ninguém prejudique a minha menina.
- Não tive esta intenção minha senhora.

Chegamos ao hotel. Nos fundos ficava a casa da família. Um dos empregados ajudou com bagagem. Despedimo-nos, eu triste com a situação e Lídia envergonhada. A tia continuava resmungando algo que eu não conseguia compreender. Desde aquele momento passei a entender melhor a minha situação de doente. Voltei para casa desanimado. No dia seguinte me sentia mal.

Ouvi no rádio a notícia da morte do avô de Lídia. Pensei em ir até o velório, porém talvez piorasse minha situação frente à tia dela. Passei o dia todo pensando na garota. À noite senti um pouco de febre, fui deitar-me mais cedo. Lembrava de Lídia e pensava em Marta. Será que ela compreenderia o meu interesse por outra mulher. Ela me amou tanto. Sonhei com Marta. Ela se aproximava e me beijava o rosto, tocava minha cabeça dizendo:

- Meu bem, fomos felizes enquanto estivemos juntos. Não abra mão da sua vida, busque novamente a felicidade.
Acordei-me sobressaltado. Fiquei triste, pois a sensação do toque de Marta havia sido tão boa, porém ela não estava ao meu lado. “Não abra mão da sua vida” foi o que ela me disse. Preciso viver.

Retomei com afinco o meu tratamento. Prometi a mim mesmo que só voltaria a procurar por Lídia se eu pudesse curar-me. Alguns meses se passaram e os primeiros resultados começaram a surgir. Encontrei uma maneira de corresponder-me mais agilmente com minha empresa e ensaiei minha volta ao trabalho, mesmo que a distância.
Num domingo convidei Mário e Genésio para irem comigo até um dos rios murmurantes da região. Estacionamos o carro ao lado de um gramado onde pessoas faziam piqueniques. Precisávamos cruzar o campo para acessar uma pequena cascata. No meio do caminho percebi a presença de Lídia e de outra jovem. Fingi não perceber a presença dela, porém, ela me chamou pelo nome:
- Tomaz, quanto tempo. Queria muito falar-lhe, porém, não sabia onde encontra-lo. Não tive oportunidade de me desculpar pelo constrangimento de nosso último encontro.
- Não há nada do que se desculpar. Você sempre foi muito gentil comigo.

- De qualquer forma, espero que me perdoe pelo gênio de minha tia.

- Eu a entendo perfeitamente. Creio que só queira o seu bem.

- Eu sei disso, porém, com todo o cuidado dela acabo por ter poucos amigos.

- Vejo que tem uma amiga bem próxima.

- Que falta de jeito! Esta é minha prima Diana.

- Muito prazer Diana!

- Então este é o sujeito que assustou a tia Maria? Ele não me parece muito doente! Nem tão velho!

- Que indelicadeza Diana, parece a tia Maria falando.
Peço que perdoe também a imaturidade de Diana.

- As crianças são sinceras, Lídia.

- Eu não sou criança, tenho dezesseis anos.

- Pois bem, minha garota de dezesseis anos. Não aparento estar doente porque melhorei muito. E devo parte disto a sua prima Lídia e a sua tia Maria.

- Deve à mim? – perguntou Lídia curiosa.

- Sim, me senti desafiado e prometi a mim mesmo que só voltaria a procurar você quando tivesse a certeza que eu estivesse curado.

- Então me procuraria? – perguntou ela, corada.

- Quem fala demais acaba por morder a própria língua. – disse eu.

Sem jeito chamei Genésio e Mário e os apresentei às primas. Lídia simpatizou-se muito com o menino e ele com ela. Seguimos nosso caminho e eu me senti bem por ter falado um pouco sobre os meus sentimentos por Lídia.
Chegou um novo inverno e tive a bela notícia de que eu estava curado. Precisava tomar algumas decisões, entre elas ficar ou não em Campos. A única certeza que eu tinha era a de procurar por Lídia. Fui até a casa da família, no hotel. Disseram-me que ela viajara de volta para Itararé. Haviam recebido recomendação de dona Maria para não me entregarem o endereço dela.

Eu não poderia ficar em Campos, tudo lá me fazia lembrar Lídia.Viajei para São Paulo. Meu sobrinho havia feito um belo trabalho na minha ausência e a empresa só crescia. Como voltei ele resolveu casar-se, pois, adiou a cerimônia por diversas vezes temendo me desapontar nos negócios. Marcou a data do casamento. Como minha irmã era viúva, acompanhei-a no dia da cerimônia.

No altar da igreja, eu observava os convidados enquanto aguardava a chegada da noiva. Lembrei-me do dia em que recebi Marta naquele mesmo lugar. Antes da noiva entraram os padrinhos. Para minha surpresa uma das madrinhas era Lídia que estava deslumbrante num vestido de festa. Seus olhos brilhavam mais que lustre principal da velha igreja. Ela parecia cheia de vida. Meu coração bateu de forma descompassada.

Quando chegou ao altar ela também me reconheceu, sorriu discretamente e cochichou algo no ouvido de seu acompanhante. Só aí me dei conta da presença do seu par. Quem seria? Um namorado? Noivo? Tentei observar seus dedos, em ambas as mãos. Estavam encobertos pela luva e nada puderam me revelar.

Olhei para o primeiro banco do lado esquerdo e lá estava a tia Maria, me olhando com ar de reprovação. Fiquei ansioso pelo final da cerimônia e na recepção, de forma afoita, perguntei ao meu sobrinho durante os cumprimentos quem era a madrinha da noiva. Com um sorriso no rosto ele me respondeu que era prima de sua noiva Joana. Lendo meus pensamentos ele completou:
- O rapaz que a acompanha é apenas seu primo, agora meu cunhado.

Este mundo é mesmo pequeno! – pensei
Na festa, depois da valsa dos noivos, convidei Lídia para dançar. Tia Maria assentiu num gesto de cabeça e dançamos ao som de Danúbio Azul.

- Parece que o mundo conspira ao nosso favor. – me disse ela.

- Fico feliz que pense assim. – respondi.
Depois daquele dia passamos a nos corresponder. A espera por uma de suas cartas era difícil, pois, a ansiedade tomava conta de meu peito.

Um novo verão chegou e combinamos nos encontrar em Campos do Jordão. Não havíamos acertado a data da viagem. Quando cheguei a Pinda a primeira pessoa que vi quando cheguei á plataforma da estação foi Lídia, acompanhada de sua tia, que desta vez me recebeu com um sorriso no rosto. Para minha surpresa cedeu-me seu lugar e fiz o trajeto no vagão da máquina elétrica ao lado de meu novo amor.
Passamos aquele mês de férias por lá e, com o consentimento da família dela marcamos o casamento para a primavera seguinte em uma igreja de Campos.

Um ano depois nasceu nossa filha Cristina, batizada na mesma igreja. Nossas visitas a Campos do Jordão se tornaram mais frequentes. A casa teve seu espaço melhor aproveitado. Mário ajudava a tomar conta de Cristina e cuidava dela como ninguém. Tia Maria casou-se com um senhor que conheceu naquela viagem de férias quando trocou de lugar comigo no trem.

Passamos anos muito felizes juntos. Cristina cresceu, foi estudar na capital e por alguns anos nos sentimos um pouco mais sozinhos. Genésio e Maria Aparecida continuaram conosco. Mário além de um grande amigo se tornou meu sócio num novo hotel que construímos na cidade.

Cristina se formou médica pneumologista e decidiu trabalhar em Campos. Morando na cidade se aproximou ainda mais de Mário e para nossa satisfação decidiram se casar.
Desde a minha primeira viagem a bordo do trem da Estrada de Ferro Campos do Jordão se passaram 33 anos. Hoje pela manhã eu, Lídia, Mário, Cristina e Nelson, meu neto, saímos cedo. Assistimos a missa no Mosteiro São João, apreciamos o canto das Irmãs Beneditinas, agradecemos pela nossa felicidade e rezamos pelas almas de Genésio e Maria Aparecida. Fomos até a Estação de Abernésia, pegamos o bondinho e descemos na Estação Emílio Ribas. Ali, na Vila Capivari nós pegamos o teleférico e subimos até o Morro do Elefante.Juntos mostramos ao nosso neto, agora com quatro anos, a nossa bela Campos do Jordão, a nossa montanha e lá, no centro do vale, a nossa ferrovia, que marcou a vida de tanta gente.

- Pai, vamos comer aquela truta com alcaparras que tanto gostamos?! – pediu-me Cristina, enquanto abraçava a minha doce Lídia, que carregava meu neto nos braços.


Texto vencedor na Categoria Nacional no Concurso Cultural 100 anos da Ferrovia Campos do Jordão – dez/2014

Adnelson Campos
22/02/2015

 

 

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